quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Reencontro


O espetáculo acaba
E quando volto para casa
Tiro a máscara
E tento dormir
Conciliar minha última invenção ao travesseiro

Os moinhos de vento zunem fora
O anúncio da chuva
Meu corpo resfria seu sabor
Tento aquietar meu desejo
Fazia tempo que não te via
Como roguei
Roguei a mim
Roguei a virgem Maria
Para não embargar a voz
Tudo sair como que natural
Espontâneo
Amigos
Amigos que se amaram um dia
Perderam-se em caricias pelas madrugadas
Riram de bobagens
Contamos rachaduras na parede
Por não ter o que fazer
Rimos da lagartixa pintada pela criança
Suspiramos a eternidade
Ah, como sonhamos de mãos dadas vendo o dia amanhecer.
Eu adormecia no seu colo e você para não me acordar, não se mexia, ficava naquela posição até a perna formigar.

Começa a chover!
Olho pela janela embaçada
Tal como fazia quando criança
Sozinha....

Seguirei sozinha...

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Retrato feliz


Olhei para o horizonte e vi as nuvens fofas invadindo o mar
Os pássaros rasgavam a paisagem azul
Ipanema gemeu sua beleza
Em cada esquina um santo
Em cada canto uma memória
Nas minhas memórias agora a paz
Passo por Copacabana as ondas do mar borbulham para mim, num infinito sorriso
De cócegas, de sons
Os banhistas bailam numa coreografia massageando minhas retinas atentas
Um cego caminha pelo calçadão
Sente a maresia
Neste Rio de tantas montanhas, cachoeiras, vida...
O sol queima minha pele como presente
As cangas tremulam suas cores nas mãos dos ambulantes
Tento fotografar a vida na poesia
Mas nada retrata tão bem a vida como a vida
Tudo parece pequeno diante a natureza viva dos dias
Bendito dias estejam comigo
Minha alma encantada flutua dentre cores, texturas, sons, peles, bocas...
Mergulho na lembrança desta noite
Brilha meu sorriso, há tanto opaco.


Desejos nefastos


Em pensamentos
teu nariz aquilino
passa pelos meus seios
que eriçam
    de desejo
    de desejo!!!!
oh, meu Deus, de desejo
Sua boca
devora-me
lambe minha alma cintilante, no outono
Seus olhos reluzem
assustam-me
mas devoram-me

Tua pele roça minha pele
e parece que não sei mais qual é minha pele
revisto-me de você
e no seu desejo espelho-me
entrego-me
sozinha, amparada por seus braços, que imagino

Nos meus sonhos, nossos corpos se encontram
porque querem se encontrar
querem se encontrar!
Nada os aplaca
nada
nada
nada

Sonhos e silêncios
silêncio  para evitar nossos desejos
nossos desejos tão íntimos
que revelam
sempre em pensamentos
em pensamentos, Deus meu! Em pensamentos

Meu corpo nu, uma bota, uma meia rendada... Seus fetiches tatuados em meu corpo
Algemas que libertam...

Ah, se minha boca encontrasse seus lábios
eu lhe devoraria
a noite toda sem fim
Nossa intimidade de séculos
de vidas que os ciganos leram
num acampamento de astros

Eu sonhei com você
junto a mim
numa piscina de espumas
num desejo sem fim
Nos perdemos no infinito
Na natureza que não morre nunca
que está acima das ganâncias
acima de tudo
a nossa natureza primeira
instintiva

   Beija-me
   mesmo que em pensamentos
e eu te sentirei
lembrarei
elevarei meu espírito ao éden
Ninfas dançarão 
numa sensualidade selvagem
Apolo
Afrodite
todos os mitos eróticos
estarão ao nosso redor
e brindaremos no céu de outono
o prazer
o prazer eterno de nossos corpos...


 

Doce beijo de anis


A maciez do seu sorriso alegra
Anima
Faz crer
Escorrego sempre em tobogãs de ilusão
Caio em cacos de vidro e sempre levanto com profundos cortes 
Caminho num deserto de areia sozinha
O vento e o sol cicatrizam minha pele
Vivo onde há espaço
Quando há espaço
Seu beijo é a mais pura contestação que essa vida vale a pena
Fonte inspiradora
Lampejo de graça diante tantas desesperanças
Amanhã já não sei
Você pode partir sem pedir licença
Sem se despedir
Passar por mim na rua, sem se dar conta
Carregar muitos girassóis e nenhum sorrir para mim


Enquanto o hoje acontece
Vamos ao cinema
Com balas e beijos de anis
Beber vinho com chocolate
Deliciar-se num banho de espumas
Sorrir como crianças
Sem compromisso

O Rato

Eu vi um rato no mato

que ato
que ato
Roendo
roia
a dor
a agonia
O rato
carregou
em seu trem vagão
toda confusão
O rato
esse coitado
passageiro
ultrajado
o escolhido e apedrejado
que leve consigo
minha dor
minha ilusão




08/2002

Um chapéu, uma lembrança...


O show de Rock está intimamente ligado à adolescência; tem qualquer coisa de novo, um frenesi, uma batida violenta e decidida. É como se representasse a ânsia que o adolescente carrega. O som do rock rompe o silêncio como se rompesse o tempo, transforma com vigor jovem. Mas seria indevidamente só atribuído a adolescentes, explico para não enfurecer os roqueiros mais velhos: essa paixão é carregada pela vida, e o coração do verdadeiro roqueiro não envelhece nunca, sendo então a juventude do rock inesgotável. E é nessas condições que nossa personagem tomou posse do chapéu carregado pelo vento, no florescer da adolescência.
O estádio estava lotado, as pessoas acotovelavam-se para chegar o mais perto da barra que separava o palco. Flávia chegou bem cedo, acompanhada de Ana, sua amiga inseparável, pois a ordem de chegada determina o apreço e a vaga, se é que se pode chamar assim.
O sol estava escaldante, sendo aliviado por esguichos de água. A proximidade natural ao invés de aborrecer excitava ainda mais. A amiga Ana, vislumbrando as infinitas possibilidades que existia naquele estádio, teve a idéia de mudar de lugar, pois deveriam ficar próximas de pessoas interessantes, já que os suores iriam misturar-se, era melhor fazer uma seleção. Assim foi: foram perfurando a multidão até encontrar dois garotos bem bonitinhos. Neste caso a paquera era fácil, o contato corporal direto dispensava olhares tímidos, ou escancarados, era melhor não olhar, os odores envolviam e decidiam. Ana logo estava aos beijos com um dos garotos, Vitor, e permaneceriam assim grudados por todo o show. Desta maneira Flávia ficou só. O outro garoto não se interessou por ela, ao que ela retribuiu pensando também não ter ficado interessada por ele. Mentiu pra si mesma. Resolveu sair dali, consultou à amiga num dos pequenos intervalos de beijos que a separava do recente amor:

- Vamos sair daqui?
Ao que Ana respondeu.
- Não sei se o Vitor vai querer sair. Calma, tenho que ver.
- Vai logo
A chuva começou a cair, aliviando o calor. Choveu, parou, tornou a chover, parou. A roupa molhada colava no corpo.
O tempo passava e ela, coitada, não obtinha nenhuma resposta. Tornou a perguntar e ouviu o que temia: Vitor, não queria sair dali. O jeito foi contentar-se com a situação, já que não desejava sair sozinha.
O show começou e os gritos agudos das garotas, voavam no estádio lotado. O movimento ficou muito maior. As garotas desesperadas queriam chegar mais perto da banda. Ver de perto o objeto do desejo. E eles que lá estavam desde cedo, foram comprimidos na grade de proteção. Mas tudo fazia parte. As músicas diziam seu recado, ingênuo e crédulo na vida. E todos cantavam, como num grande coro. E o show foi terminando e, as vozes pediam umas e outras músicas. Acabou o show e saíram do palco lançando as baquetas, que passaram longe de onde eles estavam. Voltaram após um acalorado bis. Cantaram a última música. Um chapéu flutuou no ar vindo do palco. Caiu diretamente nas mãos de Flávia. Acabou o show. Desceu o guitarrista e ficou antes da barra de proteção. Chamou pela garota que estava com o chapéu na mão. Gritou:
- Você pode me devolver o chapéu, ele caiu sem querer?
Ao que ela respondeu, prontamente:
- Não, eu consegui pegar.
Ele replicou:
- Tudo bem, mas é que eu não joguei intencionalmente.
Ela parou e pensou um pouco e respondeu:
- Mas, calcula quanta sorte tive em pegá-lo.
- Entra aqui pra eu falar com você.
Ela pulou a grade com a ajuda dele. Quando chegou do outro lado, estando bem próxima dele, percebeu o quanto ele era alto e bonito: moreno de cabelos lisos e negros; a pele lisa, parecendo muito macia; a boca bonita e carnuda, os dentes brancos e perfeitos.
- Me devolva, por favor, eu comprei esse chapéu, num lugar que não sei se voltarei.
- Você irá voltar, eu tenho certeza, mas esse chapéu agora é meu.
Decepcionado ele disse:
- Tá, pode ficar com ele.
Ela pulou em sua direção e deu-lhe um beijo na face.

Quando voltou para o outro lado, a amiga disse:
- Aí Flávia, já ganhou.
Ela corou de vergonha.

Foram saindo do estádio. Lentamente, pois os primeiros a chegar, também eram os últimos a sair, já que o portão de saída ficava no fim do estádio. Flávia foi embora contente, levando o chapéu e uma lembrança.


O trem de papel

Estava na estação a esperar o trem, acho que há quinze minutos. Olhava de soslaio às vezes para o relógio afixado na pilastra, que parecia derreter, por isso não fixava o olhar e nem tinha certeza de quanto tempo ficara no turbilhão do tempo desde que ali chegara. Sei que o relógio parecia viscoso, derreter-se, tal como em quadro de Salvador Dalí. Escolhi o final da estação que sempre fora meu lugar predileto das estações de trem, penso que ali é onde exerço minha verdadeira meditação. Olho para o horizonte e consigo ver a cor do céu com o traçado dos fios da eletricidade da engenhoca para condução dos vagões; vejo vir de longe os trilhos que me levarão para algum lugar, quase sempre conhecido, como se o porvir alguma vez nos fosse conhecido.
Evitando olhar o relógio, com seus ponteiros e sua hora e seu tempo viscosos, passei a olhar para os trilhos ao lado da plataforma. De repente surgiu um pontinho preto, quase cinzento, imóvel, depois outro, depois outro, e muitos e muitos outros. Esses pontos começaram a mover-se e fazer um barulho que eu quase identificava, começaram a ganhar forma que eu quase descobria o que era, mas meu corpo ficou inerte, não se movia sobremaneira, talvez fosse o horror de saber o que sabia e não queria acreditar. Eram ratos! Meu Deus, eram ratos. Logo eu que sofro de rato-fobia, fechei os olhos, mas meus olhos coçavam. Depois de algum tempo, finalmente os abri , respirei fundo e pensei: “cretina, você tem que se mover”,  comecei movendo o dedão do pé, depois os dedos das mãos, e quando vi que podia me mover, dei um pulo de  sobressalto e um grito grave e desesperado e  corri. A estação estava deserta, veio um guarda de uniforme azul, perguntou: “A senhora está bem¿” – Ao que respondi com a voz trêmula: “Senhorita. Estou bem sim.”  
Ouvi o apito do trem e fiquei esperando na plataforma o trem encostar, não me atrevi olhar novamente para os trilhos. O trem parou, eu entrei, me certificando se não havia nenhum rato  dentro, mas eles não estavam lá. O vagão estava quase vazio, tinha algumas pessoas, para ser precisa cinco, todas com a cabeça cobertas pelos capuzes das blusas. O trem me pareceu ter uma textura diferente como se fosse de papel e as cores não eram as cores habituais da companhia. As cores eram fortes, bancos vermelhos, o teto azul petróleo, as paredes roxas com bolas brancas, o piso bege, com riscas pretas, ou seja, nada convencional. Sentei desconfiada e começou a tocar uma música, “Another Brick in the Wall” do Pink Floyd. Aquilo me soou uma volta à adolescência, como se estivesse entrando numa viagem lisérgica. Fiquei por um tempo quieta ouvindo a música, sentindo seu ritmo, prestando atenção a sua letra, talvez aquilo me dissesse alguma coisa. “We Don`t need no thought control”. Essa frase podia ser a chave daquela viagem. A música tocou inteira e silenciou. As pessoas continuavam paradas com a cabeça baixa. Eu quase não ousava olhá-las. Não sabia o que fazer, fiquei olhando para minhas unhas, tirando o esmalte verde que descascava. Nisso o trem parou numa estação, levantei-me, mas era como se meus pés estivessem pregados ao assoalho do trem, percebi que não podia sair dalí. Lá fora o trânsito de pessoas era intenso, até que entrou no vagão, assustado, como que fugindo de alguém, um garoto de mais ou menos uns dezenove anos. Sentou-se no banco a minha frente. Fitei seu rosto e mal pude disfarçar meu susto, ele não tinha nariz e seus olhos só tinham o branco. Fiquei com muita agonia tentando imaginar como ele respirava, quase faltou a mim a respiração. Permaneci quieta, sem saber o que fazer, sem entender porque havia sido atirada aquela situação esquisita. Os encapuzados permaneciam da mesma maneira, sem levantar a cabeça e sem dizer palavra.
O trem parou novamente, desta vez bruscamente. Os encapuzados levantaram-se, lentamente também foram erguendo o rosto e para minha enorme perplexidade: eles não tinham rosto; em uníssono cantaram o refrão de “Another Brick in the Wall” do Pink Floyd - “We Don`t need no thought control”- E desceram para um campo de girassóis sob um céu vermelho.
Fiquei ali extasiada pela imagem que havia visto do campo de girassóis sob aquele céu vermelho que parecia irreal, artificial, vertiginoso, assombroso, mas encantador. A frase ecoava ainda aos meus ouvidos: “We Don`t need no thought control”. Era como se eu estivesse drogada, mas eu não havia feito uso de nenhuma substância alucinógena, poderia ser parte da viagem da droga, não lembrar da ingestão. Resolvi não questionar mais e me entregar. Mas a pergunta era: me entregar a quê¿ O que mais poderia acontecer¿ Ou o que é muito pior, o que poderia me acontecer¿
O trem parou novamente. Olhei para fora e não havia nada, estávamos suspensos no espaço. Começou a escurecer lá fora. O garoto sem nariz levantou-se e acionou um botão amarelo no canto esquerdo do teto e acenderam-se luzes amarelas. Foi à outra extremidade do vagão, apertou outro botão vermelho e acenderam-se alguns fachos de luzes em vermelho, voltou para sua cadeira em frente a minha e sentou-se quieto. Começou a tocar uma música francesa erótica. O garoto levantou-se e veio ajoelhar-se bem em minha frente. Começou a soprar palavras em francês e seu hálito era delicioso e envolvente, um feitiço. Só consegui ver sua boca que era linda, a mais bela que já vi na vida, dentes perfeitos, lábios perfeitos. Até que ele tocou meus lábios, nos beijamos, o beijo mais terno e bom. O trem começou a andar da maneira mais macia, abri meus olhos e atravessávamos o firmamento repleto de estrelas, lindas! Fechei os olhos, paramos de nos beijar e o trem parou. Ele desceu, as luzes apagaram, a musica silenciou e eu jamais esquecerei daquele beijo sem olhos.
O trem seguiu viagem e fiquei sozinha no vagão pensando no que mais poderia acontecer, ouvi um barulho que vinha da porta que dividia os vagões, de repente ela se abriu e entrou uma garota loirinha cantarolando bem baixo, quase inaudível uma música, que me era familiar, mas que eu não conseguia decifrar qual era, e mais um garoto igualmente loiro e de cabelos cacheados entrou cantarolando a mesma música e mais outro e mais outra, todos vestidos de roupas sociais cinzas e na fila vertical que surgia no vagão a cantoria ganhava volume e já passavam de quinze crianças. Até que todos marchavam e cantavam. Nessa marcha ritmada e evidentemente ensaiada todos viraram-se de frente para mim. Agora eu já conseguia identificar a música: “Quero ver, você não chorar, não olhar pra trás, nem se arrepender do faz. Quero ver o amor nascer, mas se a dor vier, você resistir e sorrir. Se você pode ser assim, tão...”. E as crianças pararam de cantar, estenderam as mãos para frente e de seus dedos começaram a brotar flores, de muitas cores, pequenas e delicadas flores. Um cheiro doce me embriagou e comecei a rir e as crianças começaram a rir junto a mim e corríamos pelo vagão numa felicidade nunca antes sentida por mim. O trem parou. Fora do vagão tudo era fogo, mas eu não sentia calor, era como se dentro do vagão tudo estivesse imune. As crianças uma a uma me beijaram a face delicadamente e sumiram nas chamas flamejantes.
O trem seguiu seu destino, eu seguia embriagada, para onde¿ Não sabia. Deitei no banco e adormeci. Seria um sonho dentro de um sonho¿ Sonhei que estava na Irlanda, num castelo em ruínas, seria uma viagem dentro de uma viagem¿ Vislumbrava a paisagem cinza da Irlanda, os lagos espelhados, a vegetação verde com seus pontos brancos de ovelhinhas dóceis de algodão. Passeei por suas bucólicas cidadelas que de tão pequenas tinham sempre ao lado do cemitério a igreja. Colhi amoras, brinquei entre as flores. Fui muito feliz, mas acordei e ainda estava no trem, ou seja, o trem era minha realidade. A minha frente agora se sentava uma senhora gorda com um lenço preto na cabeça, parecia uma matriarca de Andaluzia, saída de uma peça de Federico Garcia Lorca, me olhava com olhar inquisidor, como se estivesse me reprovando, como se eu fosse uma espécie de Joana D`Arc pós moderna. Lembrei do refrão da música: “é, não deixarei que eles controlem meus pensamentos, que venha o ser mais estranho, saberei me defender”. E gritei alto: “saberei me defender”. A senhora meneou a cabeça em sinal de desprezo. A locomotiva se pôs a andar mais rapidamente e comecei a ouvir muitas vozes em minha cabeça. Vozes de pessoas próximas, de meus pais, irmãos, amigos íntimos, falavam coisas desconexas, frases de amor, de desamor, de incentivo, de depreciação. Essas vozes começaram a lembrar as escolhas que fiz em minha vida e a levantar hipóteses se eu tivesse feito diferente, como teria sido. Essa aflição deve ter durado por muito tempo, não sei estimar, mas me pareceram dias, mas não vi mais nada, fiquei imersa nesse tormento que não parecia ter fim. Ouvia as vozes e suas suposições e chorava copiosamente. Filmes de como minha vida poderia ter sido, passavam pela minha cabeça. Foi o martírio mais bem arquitetado que poderia ter vivido. Seja quem for que tenha criado essa viagem que fui submetida é o gênio da retaliação, porque só posso ter feito alguma coisa para merecer tamanho castigo. Aos poucos as vozes foram desaparecendo e abri os olhos a senhora de Lorca não estava mais a minha frente, o que me levou a conclusão de que o trem havia parado, ou a senhora simplesmente evaporou no ar, tudo era possível.
O trem parou e um anúncio foi dado: “estação final, solicitamos a todos que desembarquem nessa estação”. Desci, olhei a minha volta e estava exatamente na estação onde havia embarcado, o trem evaporou. Segui perplexa pelas ruas a caminho de casa.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O Velório

Subia-se a pequena escada e, ao adentrar a sala, sentia-se o cheiro das rosas. Duas velas acesas na cabeceira da morta, pessoas em volta do caixão branco, algumas cadeiras nos cantos. Sentava-se numa das cadeiras uma senhora gorda, trajando um vestido cinza, com um véu negro sobre a pele enrugada e a expressão sisuda. Ela chorava a dor lancinante da perda da sobrinha. Era um choro baixo, quase inaudível, mas contínuo, que compunha a atmosfera da última visita: o velório.
A mãe, de pé, em frente ao caixão, falava baixinho:
- Sofreu tanto, a minha filhinha, lutou tanto, para agora ir desse jeito.
Dizia ela, passando levemente a mão no rosto da filha.
Neste momento, Maria Laura, acompanhada da mãe, subia a escada recebendo as ordens:
- As pessoas estão muito tristes, por isso você tem que ficar bem quieta, para não incomodar ninguém.
Maria Laura meneou a cabeça afirmativamente, e ia passando as mãos nas folhas da árvore do lado da escada.
Quando entraram na sala, Elisabete, a mãe de Maria Laura, foi dar as condolências aos parentes. Maria Laura a seguia, tinha o olhar curioso e espantado. As pessoas choravam muito e isso parecia constrangê-la. Depois de falar com todo mundo, Elisabete foi até o caixão e Maria Laura acompanhou-a. Fez o sinal da cruz; a menina imitou-a num gesto desencontrado e beijou a mãozinha. A mãe começou a rezar. Maria Laura ficou do lado, olhando fixamente para o rosto da morta: lembrava das visitas que tinha feito, antes, naquela mesma casa. Sempre olhara com curiosidade para Júlia e agora, observando-a morta, o sentimento se intensificava. Só desviava o olhar para olhar para mãe, que com os olhos fechados continuava a sussurrar sua reza.
Júlia morreu aos treze anos. Era uma garota tísica, os olhos fundos e negros não pareciam, nem de longe, o de uma garota na pré-adolescência: expressavam a amargura de uma vida interrompida. Quase nunca sorria. Por causa da doença, não saia para brincar. Embora Júlia fosse mais velha que Maria Laura, tinham o mesmo tamanho. Talvez pela diferença de idade, não se interessasse muito por Maria Laura, ou o olhar desconfiado, e por vezes bisbilhoteiro da menina, deixava-a pouco à vontade. Como era uma garota particularmente diferente das outras, Júlia, isolava-se, acuada na piedade que sentiam por ela. Falava de seu constrangimento pelos olhos, já que ocultava sua voz. Desenvolveu uma timidez, seus gestos eram pequenos e frágeis.
Maria Laura, imersa em lembranças, olhava para o rosto pálido e mórbido de Júlia. Reparou como seu queixo era pontiagudo, o formato de seus ossos muito evidentes. Ela olhava para sua mãe, católica fervorosa que continuava a rezar. Queria afastar-se, mas, não queria sair dali sozinha; aquele ambiente era demasiadamente incômodo para ela.
Em alguns momentos, Georgia, a mãe de Júlia, vinha pelo outro lado do caixão, e punha suas mãos sobre as mãos da defunta. Curiosamente, não chorava. Falava muito, como se a filha ainda estivesse viva. Beijava-a compulsivamente, até que alguém da família, vinha e falava baixinho alguma coisa no seu ouvido, pegava-a pelo braço e a levava para fora.
Maria Laura ficava cada vez mais impaciente, e até mesmo, pode-se dizer, amedrontada. Assustava-se com a hipótese de estar dentro do caixão no lugar de Júlia. Pela primeira vez, presenciava a morte de uma pessoa com idade próxima a sua. A realidade da morte se aproximava dela. Ficava arrepiada só de pensar: a terra batendo em seu caixão, e ela imóvel, sem poder falar que queria desesperadamente sair dali. Pensava essas coisas olhando fixamente, para o caixão. As rosas brancas, assim de perto, exalavam muito. A morta estava com um vestido branco. Morreu virgem.
Maria Laura, olhou para as mãos levemente arroxeadas, para o corpo magro quase todo coberto pelas rosas, para os pés pequenos e descalços, voltou rapidamente o olhar para rosto de Júlia e viu num relance ela mexer a boca, como que torcendo o queixo. Maria Laura fechou os olhos, para não ver. Virou a cabeça e olhou para mãe assustada. Elizabete estava terminando sua reza. Naquele momento, tinha acabado de fazer o sinal da cruz. Fez um gesto para Maria Laura, que respirou aliviada, para que saíssem dali. Maria Laura olhou novamente o olhar para morta que mais uma vez, mexeu a boca. Pegou na mão da mãe. Sua mãozinha suava fria.
Saíram de perto do caixão. Sentaram numa cadeira vazia num canto. Maria Laura sentou-se no colo da mãe. Ficaram em silêncio. Pensou que nunca mais queria ver o rosto de Júlia. Mas a imagem da morta ficaria impressa para sempre em sua memória.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

No Fundo do Mar

De repente ela se viu entre corais coloridos, estrelas do mar, moluscos, foceis, peixes, golfinhos e todo um universo lindo e fascinante que até então ela desconhecia, tudo pulsante, tão próximo e vivo, mas ela não entendia como havia ido parar ali, como respirava sem auxilio de máscaras de oxigênio, lembrava-se vagamente que estava na praia com uma amiga, conversando e lendo uma revista feminina sem importância; a conversa com a amiga, a canga estendida na areia, a revista, tudo isso agora parecia um sonho, e o fundo do mar parecia a realidade, ou estava ela sonhando? Havia adormecido na areia e sonhava agora com o fundo do mar? Não tinha como saber...Tentou acordar, sacudiu o corpo e sentiu apenas a pressão da água ao redor, mesmo que fosse um sonho, não conseguia acordar, o melhor a fazer era se render e, nada mal aquela situação, afinal, sempre tivera vontade de mergulhar e nunca, ou por falta de coragem, oportunidade, havia mergulhado.  
Seus olhos encantados nunca haviam visto tanta exuberância de cores, texturas e formas. Como era belo e peculiar o fundo do mar, como nadavam os peixes, num deslizar calmo. Teriam eles alguma forma de comunicação? É muita presunção nossa, os humanos, achar que só nós nos comunicamos. Pensar que só através da fala há comunicação. Bem sabemos que as coisas mais lindas não são pronunciadas, são transmitidas através do olhar, de um gesto. Deve existir uma forma de comunicação ali naquele universo, claro que há, só não podemos decifrá-la, pois não pertencemos a ele.
Tudo continuava em harmonia, como que ignorando a presença dela. Lily, ficava observando tudo, mas não parecia ser observada, possuía proporções bem maiores que tudo e todos ali, ou quase tudo, ainda não havia aparecido nenhum tubarão, e como ela temia por isso, bom...Esse é um outro assunto, bem mais delicado. Mas mesmo sendo quase tudo menor que ela, ninguém a notava. Os peixes passavam pelo seu corpo, entre suas pernas, debaixo dos seus seios, debaixo dos braços, como se ela fosse um pedaço de rocha.
Começou a ouvir um som de uma música que não conseguia decifrar, um vocalize vindo de longe, era um som masculino, um som lindo, o mais lindo que já ouvira em toda sua vida, começou a entrar num estado e êxtase, o som combinado a beleza do lugar fizeram com que ela não tivesse nenhuma reação, somente se entregasse a um torpor. O som ia se aproximando cada vez mais e Lily ia desfalecendo, até que ele se aproximou e tocou em suas mãos, cessando a cantoria e perguntando: - Você está bem?
Ao que Lily respondeu num sussurro:
- Nunca estive tão bem. Quem é você?
Ele respondeu com um sorriso.
- Meu nome é Gaélio. Quero te apresentar esse lugar.
A essa altura ela já não questionava o que estava fazendo ali, quem era ele, porque não precisavam de oxigênio para respirar, simplesmente havia se entregado a situação. Pensava em seu íntimo, eu olhei pra ele e me apaixonei. Meu Deus, isso é possível? Me apaixonei pela voz, pelo canto...Gaélio, Gaélio...


Ele a pegou pela mão e saíram nadando como se fizessem parte daquele lugar, seus olhos brilhavam como diamantes ao sol, a felicidade radiava no mar, eram estrelas, já eram amantes. Nadaram por longo tempo de mãos dadas, sem nada falar, mas compreendiam tudo e, a beleza do fundo do mar era propicia ao amor, as suas cores os seus tons e semitons variados, o movimento dos peixes, o fundo do mar é como uma valsa, há música, sem som, música que vibra, pulsante pela própria natureza viva. Não há como deixar de se apaixonar pelo mar e sua majestade. E paixão que nasce no fundo do mar é eterna, é mágica. Ela não questionava quem era Gaélio, porque ele também estava ali, nada disso importava, só sabia que o amava e o desejava, e como gostava de ficar ao seu lado. Pararam finalmente, só se olhavam e, isso bastava, já causava grande prazer, como ela gostava de ver seus olhos azuis ou verdes¿ Azuis esverdeados, lindos, tão lindos, e sua boca rosada que ela ainda não tocara. Tudo em seu rosto lhe transmitia calma, era como se fosse um reencontro, como se fossem almas que já conviveram em algum tempo, em algum lugar.
Sua presença fazia com que ela se sentisse bonita, viva, atraente, até porque quando eles pararam e ficaram se olhando ele disse que ela era linda. Nada mais apropriado para levantar a estima do que um amante apaixonado e a paixão em si.
Gaélio foi apresentando tudo que havia de vegetação no fundo do mar, uma anêmona gigante e brilhante com seus delgados tentáculos, gorgôneas laranja e vermelho, delicadas medusas que em novembro nadam próximo à superfície. Tudo era muito fascinante, ainda mais apresentado por Gaélio, com sua voz sensual. Aquela mistura de cores e texturas, aquele universo tão mágico e aquela paixão súbita. Estar ali, de repente, sem saber nem como e nem porque, tudo isso a deixava atônita.
Pareciam duas crianças, envolvidas em ternura, um afeto rápido que surgira, como toda aquela situação, onírica, improvável,  impossível, mas que acontecia, e enquanto pudesse acontecer que deixasse acontecer. Lily sabia que aquela paixão não passaria, que ficaria para sempre em sua memória, registrada em seu corpo, poderia sentir sempre aquela sensação se puxasse pela memória a imagem do rosto de Gaélio.
Gaélio olhou-a nos olhos e seus olhares aproximaram-se e os lábios tocaram-se, naquele momento o mundo deixou de existir e, o mundo de Lily passou a ser aquele beijo, com tanto desejo e volúpia, um beijo que poderia não ter fim. Êxtase, beijar Gaélio era puro êxtase. Os dias ao lado dele, as horas, escorriam, passavam rapidamente, voavam, conversavam sobre muitos assuntos e nunca se esgotava, havia uma sintonia entre eles em todos os sentidos. Gaélio falava para Lily sobre os segredos do fundo do mar, mas Lily não questionava nunca porque ele estava ali e quem era ele, como se existisse um tácito acordo.
Mas voltando a Gaélio e Lily, eles viviam sua paixão como se nada mais fosse existir, não pensavam na sequencia dos dias, na vida prática, até porque não havia mais prática. Lily se não estava sonhando delirava, então tudo estava certo, para que se preocupar com o que fugia do tangível, melhor se entregar. Dançavam, dançavam, a música que só eles ouviam.
Gaélio pegou Lily no colo, carregou-a até uma pedra e ficaram tentando decifrar o seu formato:
- Eu acho que parece um elefante paleolítico. – Dissse Lily. –
- Existe isso? - Perguntou Gaélio.
- Claro que existe. Você acha que no paleolítico ainda existiam dinossauros (risos). Fugiu da aula de história.
- Não disse isso, mas eu sei que haviam bisontes, mas elefantes.
- Ah, vamos supor que sim.
- Ok, elefante paleolítico. Lá vamos nós deitar em você.
- Que conversa mais infame, ignorante, infantil (risos). Sabe? É assim que me sinto quando fico com você, uma criança, brincando por esse lugar desconhecido.
- Eu também. Acho que o amor tem esse poder de nos transformar em crianças. Tirar de nós o mais inocente.
- Amor, você disse amor?
- É, amor...
Um silêncio se fez. E ficaram alí por longo tempo, observando os peixes que passavam, se beijando, como se nada mais existisse...E realmente o que mais existisse não tinha a menor importância.
De repente, Lily sentiu algo pelo seu corpo, como se fossem pequenas formiguinhas passeando, falou para Gaélio.
- Estou sentindo um formigamento no meu corpo estranho, meus lábios estão amortecendo, uma sensação estranha.
- Calma, deve ser passageiro, calma.
Mas infelizmente não era passageiro, a sensação foi aumentando progressivamente, e foi se formando um redemoinho de água acima da cabeça de Lily, lentamente, ela já nãoconseguia falar, não conseguia ouvir, olhava para Gaélio que a segurava pelos braços, tentando reanimá-la, mas seu corpo estava mole, quase desmaiando, e de seus olhos vertiam lágrimas. Acima da sua cabeça o redemoinho aumentava e ganhava força. Gaélio abraçou Lily com muito carinho e desejo, havia um medo muito grande dentro do seu peito, um pressentimento forte. No redemoinho havia aberto um túnel enorme que levava, aparentemente  até o alto do mar. Ele olhava desesperadamente para o túnel e para o rosto lindo de Lily e a beijava com sofreguidão. Ele que nunca chorava, começou a chorar, ele que era ateu começou a rezar. Lily olhou-o pela última vez e desmaiou, uma força como de um aspirador, a puxou pelo túnel e nem toda força de Gaélio foi capaz de impedir.
O túnel se fechou, tudo ficou silencioso e Gaélio perplexo, levaram o amor de sua vida. Para onde¿ E cada pedra seria para ele um elefante paleolítico. E suas lembranças seriam eternamente de Lily.
E do outro lado do Oceano Lily acordou em sua canga colorida, com a amiga do lado, acariciando seus cabelos e dizendo:
- Amiga, como você dormiu, são seis horas, o sol já se pôs, eu não conseguia te acordar de jeito nenhum, já estava começando a ficar preocupada.
- Dormir? Não, eu não dormi.
E o amor de Lily e Gaélio paira no oceano, nos encontros amorosos a noite

nas praias. Vive nos olhos de todos os casais que contemplam a lua nos dias de verão nas praias do mundo. O amor de Lily e Gaélio persiste no universo, embora duvidem de sua existência, reverbera, ecoa nos quatro cantos...