segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O Velório

Subia-se a pequena escada e, ao adentrar a sala, sentia-se o cheiro das rosas. Duas velas acesas na cabeceira da morta, pessoas em volta do caixão branco, algumas cadeiras nos cantos. Sentava-se numa das cadeiras uma senhora gorda, trajando um vestido cinza, com um véu negro sobre a pele enrugada e a expressão sisuda. Ela chorava a dor lancinante da perda da sobrinha. Era um choro baixo, quase inaudível, mas contínuo, que compunha a atmosfera da última visita: o velório.
A mãe, de pé, em frente ao caixão, falava baixinho:
- Sofreu tanto, a minha filhinha, lutou tanto, para agora ir desse jeito.
Dizia ela, passando levemente a mão no rosto da filha.
Neste momento, Maria Laura, acompanhada da mãe, subia a escada recebendo as ordens:
- As pessoas estão muito tristes, por isso você tem que ficar bem quieta, para não incomodar ninguém.
Maria Laura meneou a cabeça afirmativamente, e ia passando as mãos nas folhas da árvore do lado da escada.
Quando entraram na sala, Elisabete, a mãe de Maria Laura, foi dar as condolências aos parentes. Maria Laura a seguia, tinha o olhar curioso e espantado. As pessoas choravam muito e isso parecia constrangê-la. Depois de falar com todo mundo, Elisabete foi até o caixão e Maria Laura acompanhou-a. Fez o sinal da cruz; a menina imitou-a num gesto desencontrado e beijou a mãozinha. A mãe começou a rezar. Maria Laura ficou do lado, olhando fixamente para o rosto da morta: lembrava das visitas que tinha feito, antes, naquela mesma casa. Sempre olhara com curiosidade para Júlia e agora, observando-a morta, o sentimento se intensificava. Só desviava o olhar para olhar para mãe, que com os olhos fechados continuava a sussurrar sua reza.
Júlia morreu aos treze anos. Era uma garota tísica, os olhos fundos e negros não pareciam, nem de longe, o de uma garota na pré-adolescência: expressavam a amargura de uma vida interrompida. Quase nunca sorria. Por causa da doença, não saia para brincar. Embora Júlia fosse mais velha que Maria Laura, tinham o mesmo tamanho. Talvez pela diferença de idade, não se interessasse muito por Maria Laura, ou o olhar desconfiado, e por vezes bisbilhoteiro da menina, deixava-a pouco à vontade. Como era uma garota particularmente diferente das outras, Júlia, isolava-se, acuada na piedade que sentiam por ela. Falava de seu constrangimento pelos olhos, já que ocultava sua voz. Desenvolveu uma timidez, seus gestos eram pequenos e frágeis.
Maria Laura, imersa em lembranças, olhava para o rosto pálido e mórbido de Júlia. Reparou como seu queixo era pontiagudo, o formato de seus ossos muito evidentes. Ela olhava para sua mãe, católica fervorosa que continuava a rezar. Queria afastar-se, mas, não queria sair dali sozinha; aquele ambiente era demasiadamente incômodo para ela.
Em alguns momentos, Georgia, a mãe de Júlia, vinha pelo outro lado do caixão, e punha suas mãos sobre as mãos da defunta. Curiosamente, não chorava. Falava muito, como se a filha ainda estivesse viva. Beijava-a compulsivamente, até que alguém da família, vinha e falava baixinho alguma coisa no seu ouvido, pegava-a pelo braço e a levava para fora.
Maria Laura ficava cada vez mais impaciente, e até mesmo, pode-se dizer, amedrontada. Assustava-se com a hipótese de estar dentro do caixão no lugar de Júlia. Pela primeira vez, presenciava a morte de uma pessoa com idade próxima a sua. A realidade da morte se aproximava dela. Ficava arrepiada só de pensar: a terra batendo em seu caixão, e ela imóvel, sem poder falar que queria desesperadamente sair dali. Pensava essas coisas olhando fixamente, para o caixão. As rosas brancas, assim de perto, exalavam muito. A morta estava com um vestido branco. Morreu virgem.
Maria Laura, olhou para as mãos levemente arroxeadas, para o corpo magro quase todo coberto pelas rosas, para os pés pequenos e descalços, voltou rapidamente o olhar para rosto de Júlia e viu num relance ela mexer a boca, como que torcendo o queixo. Maria Laura fechou os olhos, para não ver. Virou a cabeça e olhou para mãe assustada. Elizabete estava terminando sua reza. Naquele momento, tinha acabado de fazer o sinal da cruz. Fez um gesto para Maria Laura, que respirou aliviada, para que saíssem dali. Maria Laura olhou novamente o olhar para morta que mais uma vez, mexeu a boca. Pegou na mão da mãe. Sua mãozinha suava fria.
Saíram de perto do caixão. Sentaram numa cadeira vazia num canto. Maria Laura sentou-se no colo da mãe. Ficaram em silêncio. Pensou que nunca mais queria ver o rosto de Júlia. Mas a imagem da morta ficaria impressa para sempre em sua memória.

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