Estava na estação a esperar o trem, acho que há quinze minutos. Olhava de soslaio às vezes para o relógio afixado na pilastra, que parecia derreter, por isso não fixava o olhar e nem tinha certeza de quanto tempo ficara no turbilhão do tempo desde que ali chegara. Sei que o relógio parecia viscoso, derreter-se, tal como em quadro de Salvador Dalí. Escolhi o final da estação que sempre fora meu lugar predileto das estações de trem, penso que ali é onde exerço minha verdadeira meditação. Olho para o horizonte e consigo ver a cor do céu com o traçado dos fios da eletricidade da engenhoca para condução dos vagões; vejo vir de longe os trilhos que me levarão para algum lugar, quase sempre conhecido, como se o porvir alguma vez nos fosse conhecido.
Evitando olhar o relógio, com seus ponteiros e sua hora e seu tempo viscosos, passei a olhar para os trilhos ao lado da plataforma. De repente surgiu um pontinho preto, quase cinzento, imóvel, depois outro, depois outro, e muitos e muitos outros. Esses pontos começaram a mover-se e fazer um barulho que eu quase identificava, começaram a ganhar forma que eu quase descobria o que era, mas meu corpo ficou inerte, não se movia sobremaneira, talvez fosse o horror de saber o que sabia e não queria acreditar. Eram ratos! Meu Deus, eram ratos. Logo eu que sofro de rato-fobia, fechei os olhos, mas meus olhos coçavam. Depois de algum tempo, finalmente os abri , respirei fundo e pensei: “cretina, você tem que se mover”, comecei movendo o dedão do pé, depois os dedos das mãos, e quando vi que podia me mover, dei um pulo de sobressalto e um grito grave e desesperado e corri. A estação estava deserta, veio um guarda de uniforme azul, perguntou: “A senhora está bem¿” – Ao que respondi com a voz trêmula: “Senhorita. Estou bem sim.”
Ouvi o apito do trem e fiquei esperando na plataforma o trem encostar, não me atrevi olhar novamente para os trilhos. O trem parou, eu entrei, me certificando se não havia nenhum rato dentro, mas eles não estavam lá. O vagão estava quase vazio, tinha algumas pessoas, para ser precisa cinco, todas com a cabeça cobertas pelos capuzes das blusas. O trem me pareceu ter uma textura diferente como se fosse de papel e as cores não eram as cores habituais da companhia. As cores eram fortes, bancos vermelhos, o teto azul petróleo, as paredes roxas com bolas brancas, o piso bege, com riscas pretas, ou seja, nada convencional. Sentei desconfiada e começou a tocar uma música, “Another Brick in the Wall” do Pink Floyd. Aquilo me soou uma volta à adolescência, como se estivesse entrando numa viagem lisérgica. Fiquei por um tempo quieta ouvindo a música, sentindo seu ritmo, prestando atenção a sua letra, talvez aquilo me dissesse alguma coisa. “We Don`t need no thought control”. Essa frase podia ser a chave daquela viagem. A música tocou inteira e silenciou. As pessoas continuavam paradas com a cabeça baixa. Eu quase não ousava olhá-las. Não sabia o que fazer, fiquei olhando para minhas unhas, tirando o esmalte verde que descascava. Nisso o trem parou numa estação, levantei-me, mas era como se meus pés estivessem pregados ao assoalho do trem, percebi que não podia sair dalí. Lá fora o trânsito de pessoas era intenso, até que entrou no vagão, assustado, como que fugindo de alguém, um garoto de mais ou menos uns dezenove anos. Sentou-se no banco a minha frente. Fitei seu rosto e mal pude disfarçar meu susto, ele não tinha nariz e seus olhos só tinham o branco. Fiquei com muita agonia tentando imaginar como ele respirava, quase faltou a mim a respiração. Permaneci quieta, sem saber o que fazer, sem entender porque havia sido atirada aquela situação esquisita. Os encapuzados permaneciam da mesma maneira, sem levantar a cabeça e sem dizer palavra.
O trem parou novamente, desta vez bruscamente. Os encapuzados levantaram-se, lentamente também foram erguendo o rosto e para minha enorme perplexidade: eles não tinham rosto; em uníssono cantaram o refrão de “Another Brick in the Wall” do Pink Floyd - “We Don`t need no thought control”- E desceram para um campo de girassóis sob um céu vermelho.
Fiquei ali extasiada pela imagem que havia visto do campo de girassóis sob aquele céu vermelho que parecia irreal, artificial, vertiginoso, assombroso, mas encantador. A frase ecoava ainda aos meus ouvidos: “We Don`t need no thought control”. Era como se eu estivesse drogada, mas eu não havia feito uso de nenhuma substância alucinógena, poderia ser parte da viagem da droga, não lembrar da ingestão. Resolvi não questionar mais e me entregar. Mas a pergunta era: me entregar a quê¿ O que mais poderia acontecer¿ Ou o que é muito pior, o que poderia me acontecer¿
O trem parou novamente. Olhei para fora e não havia nada, estávamos suspensos no espaço. Começou a escurecer lá fora. O garoto sem nariz levantou-se e acionou um botão amarelo no canto esquerdo do teto e acenderam-se luzes amarelas. Foi à outra extremidade do vagão, apertou outro botão vermelho e acenderam-se alguns fachos de luzes em vermelho, voltou para sua cadeira em frente a minha e sentou-se quieto. Começou a tocar uma música francesa erótica. O garoto levantou-se e veio ajoelhar-se bem em minha frente. Começou a soprar palavras em francês e seu hálito era delicioso e envolvente, um feitiço. Só consegui ver sua boca que era linda, a mais bela que já vi na vida, dentes perfeitos, lábios perfeitos. Até que ele tocou meus lábios, nos beijamos, o beijo mais terno e bom. O trem começou a andar da maneira mais macia, abri meus olhos e atravessávamos o firmamento repleto de estrelas, lindas! Fechei os olhos, paramos de nos beijar e o trem parou. Ele desceu, as luzes apagaram, a musica silenciou e eu jamais esquecerei daquele beijo sem olhos.
O trem seguiu viagem e fiquei sozinha no vagão pensando no que mais poderia acontecer, ouvi um barulho que vinha da porta que dividia os vagões, de repente ela se abriu e entrou uma garota loirinha cantarolando bem baixo, quase inaudível uma música, que me era familiar, mas que eu não conseguia decifrar qual era, e mais um garoto igualmente loiro e de cabelos cacheados entrou cantarolando a mesma música e mais outro e mais outra, todos vestidos de roupas sociais cinzas e na fila vertical que surgia no vagão a cantoria ganhava volume e já passavam de quinze crianças. Até que todos marchavam e cantavam. Nessa marcha ritmada e evidentemente ensaiada todos viraram-se de frente para mim. Agora eu já conseguia identificar a música: “Quero ver, você não chorar, não olhar pra trás, nem se arrepender do faz. Quero ver o amor nascer, mas se a dor vier, você resistir e sorrir. Se você pode ser assim, tão...”. E as crianças pararam de cantar, estenderam as mãos para frente e de seus dedos começaram a brotar flores, de muitas cores, pequenas e delicadas flores. Um cheiro doce me embriagou e comecei a rir e as crianças começaram a rir junto a mim e corríamos pelo vagão numa felicidade nunca antes sentida por mim. O trem parou. Fora do vagão tudo era fogo, mas eu não sentia calor, era como se dentro do vagão tudo estivesse imune. As crianças uma a uma me beijaram a face delicadamente e sumiram nas chamas flamejantes.
O trem seguiu seu destino, eu seguia embriagada, para onde¿ Não sabia. Deitei no banco e adormeci. Seria um sonho dentro de um sonho¿ Sonhei que estava na Irlanda, num castelo em ruínas, seria uma viagem dentro de uma viagem¿ Vislumbrava a paisagem cinza da Irlanda, os lagos espelhados, a vegetação verde com seus pontos brancos de ovelhinhas dóceis de algodão. Passeei por suas bucólicas cidadelas que de tão pequenas tinham sempre ao lado do cemitério a igreja. Colhi amoras, brinquei entre as flores. Fui muito feliz, mas acordei e ainda estava no trem, ou seja, o trem era minha realidade. A minha frente agora se sentava uma senhora gorda com um lenço preto na cabeça, parecia uma matriarca de Andaluzia, saída de uma peça de Federico Garcia Lorca, me olhava com olhar inquisidor, como se estivesse me reprovando, como se eu fosse uma espécie de Joana D`Arc pós moderna. Lembrei do refrão da música: “é, não deixarei que eles controlem meus pensamentos, que venha o ser mais estranho, saberei me defender”. E gritei alto: “saberei me defender”. A senhora meneou a cabeça em sinal de desprezo. A locomotiva se pôs a andar mais rapidamente e comecei a ouvir muitas vozes em minha cabeça. Vozes de pessoas próximas, de meus pais, irmãos, amigos íntimos, falavam coisas desconexas, frases de amor, de desamor, de incentivo, de depreciação. Essas vozes começaram a lembrar as escolhas que fiz em minha vida e a levantar hipóteses se eu tivesse feito diferente, como teria sido. Essa aflição deve ter durado por muito tempo, não sei estimar, mas me pareceram dias, mas não vi mais nada, fiquei imersa nesse tormento que não parecia ter fim. Ouvia as vozes e suas suposições e chorava copiosamente. Filmes de como minha vida poderia ter sido, passavam pela minha cabeça. Foi o martírio mais bem arquitetado que poderia ter vivido. Seja quem for que tenha criado essa viagem que fui submetida é o gênio da retaliação, porque só posso ter feito alguma coisa para merecer tamanho castigo. Aos poucos as vozes foram desaparecendo e abri os olhos a senhora de Lorca não estava mais a minha frente, o que me levou a conclusão de que o trem havia parado, ou a senhora simplesmente evaporou no ar, tudo era possível.
O trem parou e um anúncio foi dado: “estação final, solicitamos a todos que desembarquem nessa estação”. Desci, olhei a minha volta e estava exatamente na estação onde havia embarcado, o trem evaporou. Segui perplexa pelas ruas a caminho de casa.